terça-feira, 12 de abril de 2016

É preciso saber ouvir, é preciso querer ler compreender.

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Nota prévia: 
Eu geralmente escrevo os meus textos ou em papel ou no computador, depois eles ficam a marinar quase que esquecidos às vezes meses, de modo que aquilo que escrevo se torna sempre passado ao qual eu, no momento em que a ele volto, acrescento mais uma camada de pensamento, corto, coso, rasuro, exagero, dou voz presente: 

Chego agora ao café. Esperava ler o jornal mas não está disponível. 
Chego hoje mais cedo porque estava cansado de estar fechado no quarto a transcrever os cadernos. Li também alguns emails antigos que enviei: vejo que nada faz sentido, vejo que perdi para sempre a chave de descodificação do texto. Ando a transcrever momentos pessoais ocorridos por alturas do meu último internamento. Verifico que os discursos estão cheios de ódio e em voz alta, em erro ortográfico sucessivo. Algo em que caio em estado de descompensação. Ódios contra a família, individualmente e também contra médicos, enfermeiros, auxiliares, polícias, políticos, os internamentos são sempre políticos. Se há alguma verdade no grito, é tudo retorcido. Ódio contra tudo e todos. Este ódio é uma reacção a um veneno. Quem eu odeio lá no fundo sou eu-próprio porque não me acho capaz de uma existência saudável. Agora já não tanto, estou mais equilibrado, começo a aceitar a minha condição. Aliás, se eu hoje consigo falar sem constrangimento com a minha psiquiatra é porque andei anos a psicanalisar-me a mim próprio, a falar comigo próprio porque não tinha ninguém com quem falar e, assim, falava alto e respondia alto a mim próprio, seja entre paredes, seja na rua, no autocarro, ai valha-me cão!, o espectáculo que eu não dava… Nessa altura, não confiava nos médicos, não achava que o meu problema fosse de saúde, era um ignorante, um ovo de cegonha num ninho da torre do castelo. É preciso saber ouvir, é preciso querer ler compreender. 
Quando ocorria o que ando a transcrever para o computador, tentando agora transcender e dar-lhe brilho, eu projectava o que escondia, motejava em elipses herméticas slogans relacionados com aquilo que reprimia, nomeava, insultava e dizia «eu não, eu não sou assim, eu gosto da revolução.» Era isto que eu dizia. Escondia porque não acreditava ser possível tanta miséria, chegava a pensar ser apenas imaginação minha ou, então, factos plantados por alguém numa tentativa de roubo da consideração pessoal, de invasão do eu. Escondia para que se não soubesse o porquê de me sentir ofendido. «Não gosto de dar parte de fraco, a estátua tem de se conservar.» Isto aconteceu mesmo em plena urgência de pré-internamento compulsivo, eu preferia que me deixassem em paz mas obrigavam-me a falar e eu, querendo esconder o que penso ser facilmente acessível sem palavra-passe via telepatia wifi, verborreava porque pensava que eles sabiam todas as respostas às perguntas que me colocavam e, portanto, só poderiam estar a querer que eu confessasse. Mas confessar o quê?! Então, foda-se!, explodia generalidades boçais e retorcidas para colocar uma palavra-passe e desviar os curiosos (e eles escreviam: comportamento hetero-agressivo). 
O efeito de repetição é tal que se me desvio do assunto, este torna-se incompreensível, fragmentado, poesia de voz de cuco. e perante tal espécime de idiota, cada um lava as suas mãos, segue em frente, diz «eu tentei ajudar-te» e eu fico pelo caminho, usurpado e reduzido à insignificância, mas com mais um texto escrito e datado, cheio de segredos, a verdade esquecida para sempre debaixo da consciência. 
As pessoas esquecem, outras não perdoam, e eu muitas vezes fico na história como a ovelha negra, o tresmalhado, o que disse que louco governava, as palavras foram essas, as minhas. Utilizei a linguagem e o volume de som de um louco mal educado. A minha diferença era não saber, não ter consciência de estar a ser hipócrita como quase todos e achar que o meu agir era o melhor, pensei que a razão me assistia e podia justificar os meios utilizados, mas os fins quais eram? Oh, esqueci a maior parte das ideias que tive, perdi a consciência, o espelho, no qual a última ideia estava escrita, estilhaçado acabou por se partir. 
É verdade, eu tive um espelho em madeira que se partiu por descuido numa limpeza de quarto, e foi como se, nessa limpeza, se tivesse quebrado finalmente a ideia de que eu me embruxara a mim próprio com voltas e reviravoltas, com o «nunca olhar para trás», foi só nos cacos do espelho sendo varridos juntamente com terra, serrim, lixo orgânico, baratas mortas, picos de ganza literal mas ilusoriamente mineralizados… foi o que disseste um dia a um convidado, «esta pedra é agora uma rocha, olha, mineralizou!» É natural que esse amigo te achasse louco ou achasse que o estavas a gozar e se afastasse. É, por isso, natural que não tenhas amigos. 
Ah, reler o que se salvou do passado, para ver como fui, ou melhor, para tentar descobrir quais os factos que, mesmo sendo retorcidos, passam o crivo do esquecimento, não penso que seja isto literatura, quereria talvez transformar estas palavras em ouro mas só me aparece lixo. Chame-se erros ou não a tudo isto ou, menos punitivamente, se chame experiências de crescimento necessárias, não é preventivamente saudável esconder ou, à força, reprimir. Outro exemplo: as vezes, pergunto-me se vale a pena atirar pedras quando na nossa casa chove, pergunto-me se atirar essa pedra não é querer que o próximo baixe à nossa condição, «para veres o que é a realidade e não dizeres mais asneiras.» 
Sou arrancado a estas divagações por um telefonema da minha mãe e digo «está tudo bem, não se preocupe, tenho tomado os comprimidos, para a semana volto», digo apenas isto para a não preocupar, ela já não tem idade para isso. 
Saio do café. Caminho para o quarto. Abrando para enrolar um cigarro. Sou abordado por uma voz grossa que me tenta cumprimentar. Olho. Vejo o cabelo grisalho de um antigo colega que já não via há mais de sete anos. Vamos pelo passeio abaixo até ao teatro, onde nos separamos. Fico a pensar no que me diz: «As más notícias sabem-se sempre.» Mas fico também a pensar que nem todos guardam uma má-memória de mim e que, apesar de todo o teu passado, ainda há quem te queira voltar a apertar a mão. É como no provérbio sufi que diz qualquer coisa como «não encontrarás o que procuras mas só o encontrarás procurando», isto parece absurdo, é provável que a frase esteja distorcida mas… se eu estiver calmo a calma virá até mim. 
É raro mas, às vezes, acontece.
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Claudio Mur

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