quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Não posso aceitar ser o primeiro escritor a contar uma mentira só para manter o interesse do leitor

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A tempestade tornou-se cada vez mais violenta, até conseguir revoltar o Mudlark de tal forma que este começou a meter água pelo porão como se fosse um abstémio; de seguida, pareceu instantaneamente acalmar-se. Pode-se dizer, com justiça, o seguinte sobre uma tempestade no mar: quando acaba de partir os teus mastros, de arrancar o teu leme, de arrastar os teus botes e de fazer um belo buraco em alguma parte inacessível do teu casco vai, frequentemente, embora, em busca de algum novo navio, deixando-te sozinho para decidir quais as medidas mais adequadas a tomar em relação ao teu conforto. No nosso caso, o comandante achou adequado sentar-se na grinalda da popa, a ler um romance em três volumes.
Achei que estaria com uma disposição particularmente alegre ao ver que chegara a quase metade do segundo volume, no qual os amantes estariam obviamente a passar pelas dificuldades amorosas mais desesperadas e dilacerantes e, por isso, aproximei-me dele e informei-o de que o navio se estava a afundar.
-- Bem -- disse ele, fechando o livro, mas mantendo o indicador entre as páginas, de forma a marcar o lugar --, ele nunca serviria para muito após um abanão destes. Mas, bem, eu ... gostaria que simplesmente mandasses o imediato acabar com aquela reunião de orações. o Mudlark não é uma capela de marinheiros, creio eu.
-- Mas -- respondi, impacientemente -- não se pode fazer nada para diminuir o peso do navio?
-- Bem -- disse ele, pausada e reflectidamente --, tendo em conta que já não tem mastros para deitar abaixo, nem qualquer carga ... bem, podes lançar borda fora alguns dos passageiros mais pesados, se achas que servirá de alguma coisa.
Foi uma ideia feliz -- a intuição do génio. Caminhando rapidamente em frente, até ao castelo da proa, que, sendo a parte mais acima da água, estava cheio de passageiros, agarrei um velho cavalheiro corpulento pelo cachaço, empurrei-o contra a balaustrada, e lancei-o borda fora. Ele não tocou na água: caiu no vértice de um cone de tubarões que saltaram do mar para o encontrar, com os seus narizes reunidos num ponto, as suas caudas a tocar apenas na superfície. Acho improvável que o velhote se tenha apercebido do que lhe aconteceu. A seguir, arremessei uma mulher e atirei um bebé gordo para os ventos selvagens. A primeira foi levada para longe da minha vista pelos tubarões, tal como o velhote; o último, repartido pelas gaivotas.
Narro estas coisas exactamente como aconteceram. Seria muito fácil escrever uma bela hitória com este material -- contar como, enquanto estava ocupado a diminuir o peso do navio, fui tocado pelo espírito de auto-sacrifício de uma bela jovem, que, para salvar a vida do seu amado, empurrou a sua idosa mãe em frente para onde eu estava a trabalhar, implorando-me para levar a velha senhora, mas poupar, oh, poupar o seu querido Henry. Posso prosseguir, para contar como atirei, não apenas a velha senhora, como fora pedido, como também agarrei de imediato o querido Henry, e fi-lo voar para sotavento, até tão longe quanto podia, tendo começado por partir a sua espinha contra a balaustrada e arrancado uma dupla mão cheia dos seus cabelos encaracolados. Posso prosseguir, para declarar que, sentindo-me apaziguado, roubei então o bote grande e, levando a bela donzela, me afastei do navio condenado até à igreja de St. Massaker, Fiji, onde fomos unidos por um nó que posteriormente desatei com os meus dentes, quado a comi. Mas, na verdade, nada disto acnteceu, e não posso aceitar ser o primeiro escritor a contar uma mentira só para manter o interesse do leitor. O que realmente aconteceu foi isto: quando eu estava no tombadilho, a atirar os passageiros, um após outro, borda fora, o Comandante Abersouth, que terminara o seu romance, foi até à popa e lancou-me silenciosamente borda fora.
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[retirado do conto "Uma recordação de um naufrágio"]
Ambrose Bierce
in 'Os contos completos de Ambrose Bierce'
Traduçaõ de João Reis
Edição Eucleia Editora, 2010

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