sábado, 28 de novembro de 2015

Declaração de voto

Ontem ao anoitecer fui ao supermercado comprar alimentos e quando voltei reparei que à minha frente caminhava lentamente o Valdemar, professor de música. Andava devagar como se passasse o tempo. Tive a sensação de saber onde ele iria estacionar o seu devaneio.  Era até minha intenção assim que chegasse a casa com a saca do supermercado, comer quaquer coisa e ir tomar café, antes do jantar, a um bar ao qual já não ia há um mês, Era para lá que o Valdemar se dirigia, tinha a certeza. Já não o via há dois ou três meses. Mas quando lá cheguei, o Valdemar não estava lá. Pedi café e quando fui ao bolso para tirar as moedas para pagar, o dono disse: «Está pago, tens aqui três piratas pagos na tua conta.» Foi aí que reparei que já lá não ia há bastante tempo, o dono até tinha mudado o visual, pelo que perguntei surpreendido: «Mas quem me pagou?» Ele respondeu: «Aquele que te comprou um quadro e que vem aqui, tem perguntado por ti quando cá vem e disse para deixar pago um pirata para o pintor.» Reconheci de imediato o Valdemar na personagem do ilustre benfeitor e sorrindo pedi um pirata ao dono. É preciso dizer que um pirata, também conhecido por lambreta, é um copo pequeno de cerveja a pressão, custa o mesmo que um café, pelo que o dono serviu-me o copo e acrescentou: «Pronto, dois piratas! Ele esteve aqui há pouco.» É preciso dizer que eu fiquei com o sorriso estampado no rosto, afinal um gajo chega a um local e vê três piratas ao dispor, pagos por um amigo que já não vê há meses, uau, sentei-me na mesa, puxei de um cigarro e liguei-lhe, ele estava por perto e voltou ao bar. 
Cumprimentámo-nos, ele sentou-se, fumou um cigarro dos meus, eu agradeci-lhe os piratas já pagos. Começámos a falar, ele sendo professor falou das aulas e da alegria que alguns alunos lhe davam por suplantarem quase o mestre, outros nem por isso, «é uma disciplina facultativa.» disse. Perguntou-me o que eu achava da solução governativa encontrada para o país, e eu concordei que agora havia hpóteses, que este governo é melhor que o anterior. Falou que a prova dos alunos no quarto ano talvez já não se realize para os alunos este ano lectivo, disse-me que era uma despesa enorme, fazer o exame geral dos alunos numa escola diferente, obrigá-los a deslocar-se e a ser avaliados por outros professores. Nesta fase da conversa tive reticências e dei a minha opinião apesar de não saber muito do assunto, eu pensava que eram exames feitos na própria escola, tentei dar o exemplo da minha sobrinha: na escola faz vários testes durante o trimestre que, mesmo não contando para nota, a fazem progredir e mostrar ao professor que ela sabe e aprende o que lhe ensinam nas aulas. A opinião que tentei dar foi a de os alunos precisarem de algum modo ser avaliados e estar apenas contra o facto de se gastar dinheiro e logística em fazer destes exames uma prova nacional realizada numa escola externa e avaliada por professores que não conhecem os alunos, tentei dar a opinião de ser em cada escola e na relação dos professores com cada aluno na sala de aula e com testes periódicos, com as notas do trimestre e a nota final do ano dadas em função da avaliação dos professores que estiveram em real contacto com o aluno. 
Mas esta última frase é uma racionalizção daquilo que disse de facto, ele ficou a pensar que eu era favor dos exames e, logo, era um gajo de direita até porque a coligação, agora na oposição, foi o único partido que votou contra a abolição dos exames no quarto ano. 
A verdade é que não sei bem como está hoje o ensino, as coisas mudaram, no meu tempo parece-me que era melhor. Disse-lhe que no meu tempo, era possível passar com três negativas, o que fazia com que alunos que não fossem bons, por exemplo, a matemática e educação física podiam ainda assim passar de ano se obtivessem aproveitamento às outras disciplinas, e assim se iam encaminhando, começando a entrever um futuro através da educação, seguindo o que gostavam mais e tinham melhor aproveitamento. Ele respondeu que talvez eu achasse que os professores não sabem ensinar. Tentou deste modo uma rasteira, eu compreendi no momento mas ignorei, é impossível falar de educação com um professor não sendo eu um professor, esse professor é levado a pensar que nós não respeitamos o acto de professorar e eu respondi impulsivamente com o que ele achou uma observação naturalista: «Há alunos que simplesmente não querem aprender!» 
Tentava eu dizer que sem avaliação os alunos não sentem motivação para estudar, alguns até faltam às aulas, não aprendem nada, disse-lhe: «Há uns anos um miúdo na altura com dezoito anos mal sabia ler o jornal, tentava ler e o mais que fazia era soletrar.» Ele respondeu que talvez esse aluno tivesse algum problema cognitivo. O que eu percebi foi que ele chamou deficiente ao miúdo quando eu vejo uma falta de atracção na escola levando ao abandono desta, levando «à escola da vida». 
Não lhe disse, não lhe soube dizer mas é possível que não haver avaliação, passando os alunos quer saibam ou não, impeça apenas que alunos cábulas, que chumbavam sucessivamente de ano, sejam fonte de terror ou mesmo de fascínio e inspiração para os alunos mais novos. 
Concluindo a minha racionalização: acho que deve haver avaliação periódica pelo próprio professor dentro da própria escola, sendo a nota final de ano o resultado da aprendizagem de cada ano. Estou apenas contra a avaliação externa por professores que não conhecem os alunos. Muita coisa pode correr mal, o ensino devia ser universal e igual em cada escola mas há diferenças na qualidade de ensino entre cada escola, aos dez anos de idade é muito cedo para sujeitar as crianças a uma prova universal quando o ensino acaba por não ser igual para todos. 
Por isto e também por pragmatismo, concordo com a abolição dos exames no quarto ano, sendo esta a minha declaração de voto como cidadão.

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