sábado, 19 de setembro de 2015

Tasquinha Bar

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Iríamos à tasquinha. Sentar-nos-íamos ao balcão. Que desejar?
– Faz favor?, pergunta o empregado. Tem bigode. 
– Duas taças de vinho verde.
– Sabes um grupo que gostaria de ter?, pergunta Mário, virando-se para Maria púrpura.
– Não sei. Maria diz estas palavras, fumando um cigarro colocado no canto da boca, franzindo os olhos. Tenta demonstrar falta de interesse na conversa.
Ele continua: – Vaya Con Dios.
Mário aquece as mãos, olha para o balcão. À sua frente existe um maço do mais barato tabaco de enrolar. Maria ri-se. Fuma Lucky Strikes. Uma ligeira diferença de posses. Não existem pessoas perfeitas.
– A sério? Não acredito, Vaya Con Dios é fixe.
Meneia levemente o queixo. Apaga o cigarro no cinzeiro verde Heineken que está pousado no balcão, que pertence a Mário, que colecciona cinzeiros. Este desde sempre.
– Sim, Vaya Con Dios é fixe. Costuma passar aqui na tasquinha.
– Ah sim?, pergunta Mário.
– Posso pedir para passar. Eles, às vezes, atendem pedidos.
Maria sorri. – Tive aqui com os alemães no verão passado.
– Maria, fala-me do Hopper.
Ela diz, desviando o assunto: – Já reparaste numa coisa, Mário?, aqui as pessoas são todas naturais, a começar pelo empregado.
Ele olha à sua volta e pensa: «Quantas vezes já eu vi isto…»
– Sim… polvo a oitocentos paus, segundo São Bruno!
Então, a grande Maria diz: – Ah, apetece-me ir dançar. Não te apetece ir dançar?
Ele olha para ela. Bebe um pouco de vinho verde. Fuma um cigarro. Sorri de um modo estranho, remotamente parecido com o olhar do Travolta mas com um ar melancólico de felicidade.
– Sim, podemos ir dançar. Queres ir à Iz?
– Não!, diz Maria mudando repentinamente de ideias. – Tenho de me levantar cedo amanhã. Tenho uma reunião. Tenho que ir.
Nesse instante, um flash batuca na cabeça de Mário. «Tenho que ir, tenho que ir…» multiplicado até ao infinito. «Sim, em Setembro tenho que ir para Barcelona, tenho que acabar o curso em Setembro. Imagino lá uma vida, um amor. Como nas asas do desejo. Cassiel desce a rua cantarolando, numa bicicleta antiga, uma qualquer canção medieval. Passa numa ponte. A cidade podia ser Amsterdão. Ela, Sovereign, está num trapézio majestático, num pátio interior, numa arquitectura urbana de classe média em mil novecentos e oitenta e nove.»
Mário agita-se, fica sem fôlego e tenta não o demonstrar. Opta por um olhar aborrecido. Ela não quer ir dançar «mas sabe o que ela quer, está a fazer-se de difícil.»
«Mas Maria, eu, o Mário, não te quero mostrar nenhum quadro. Apenas te quero beijar, tocar, abraçar mas dizes que não dá!» Sente-se revoltado, nunca gostou destes joguinhos, nunca soube jogar confiante na vitória, nunca se viu como um líder oferecendo segurança, estabilidade. Acaba por se resignar: – Não, pronto!
Enquanto ele grita, Maria olha o empregado. Ele tem bigode, tem um olhar moreno, atraente, cabeleira encaracolada. Um homem viril. Camisola branca. Trinta e oito anos. Mário tem cíumes.
Ela pergunta: – Tem Vaya Con Dios?
Gil coça a cabeça e tenta sorrir.
– Sim, mas está aqui ao lado numa festa particular no Dolphins.
Mário ouve estas palavras e ri-se para Maria:
– Bem, parece que vamos ter que ir ao Dolphins!
O empregado olha para eles e desculpa-se abanando as mãos, o bigode, o sorriso nos lábios.
Maria diz-lhe com ar sério: – Pronto, obrigado. Não insista. Não tem importância. Mude de assunto.
Mas Gil, ao sair para atender outros clientes, fica a pensar no caso: «Eles, os dois, eles estão ali, costumam cá vir regularmente, são um casal simpático, sempre calmos, cheios um do outro, sorridentes, fumando, bebendo vinho verde, com tudo… contando a vida um ao outro…»
Diz um cliente: – Olha Gil!, ponha aqui um fino a este moço, se faz favor, e um para mim também.
O moço, de quem se fala, tem olhos azuis, cabelo preto com gel, um brinco na orelha, camisola preta.
– Sim, claro.
Gil dirige-se para a torneira mas o moço, com um abanar de olhos, recusa.
– Beba um fino, eu pago!, diz-lhe aquele homem, quarenta e oito anos, pescador de expressão descosida nas mangas, castanho, da cor das algas secas, barba cinzenta de quatro dias, um olhar triste tentando a alegria duma conversa. O moço recusa novamente com delicadeza. A seu lado, o «perfeito homem», que gosta de ver futebol em casa, ri-se. O pescador diz ao empregado: – Ponha um fino a esse senhor!
O «perfeito homem», vermelho do tinto, bigode e cabelos no peito, careca, os reflexos nas três franjas da testa, ele continua entre sorrisos: – Você deve estar a ver se arranja complicações.
O pescador protesta: – Não!, de qualquer modo os homens não se querem bonitos e perfeitos. Vira-se para o moço: – Bebe um fino. Sorri com olhar terno, franze os olhos. – Ponha um fino na frente deste senhor.
– Não, não faça isso. Estou de saída. Quanto é? Paga a conta e sai recordando: «A minha primeira experiência homossexual aconteceu aos dezasseis anos numa aula de físico-química…»
Gil vai à cozinha e volta cinco minutos depois. Para definir tudo isto, Mário fica a pensar que o pescador captou o título do álbum dos GNR e encontra uma frase «Triste a solidão de não haver ninguém.» 
Depois aliena-se: «Vejo uma enorme cratera. Associa-a a um circo. Num ponto elevado existe uma corda. Um funâmbulo jovem executa o seu número. Está ferido no pé esquerdo. Quem poderia ser ele? Não digas, Maria. O funâmbulo olha a corda, está ainda no início da caminhada, olha a assistência da qual não gosta, ao fundo da corda a sua sereia. A corda não segue um curso linear. Um enorme círculo, tímido, fechado sobre si mesmo. Depois do círculo, uma balança simboliza o equilíbrio da corda. Para cima, subir sempre. Um destino, sempre. Um fim pelos seus próprios meios. A sorte protege os audazes. Não quer balançar. Mas a corda é fina e ele está ferido num pé. Distingue mal a realidade da existência de um círculo que significa um longo percurso, um longo desvio, se cair será aplaudido de pé…»
– Mário, porque não vamos a tua casa? Gostava de ir, era fixe.
«Mas com que vontade diz ela isto. Com que intenção? Prometêramos não nos ver mais. Foi o que quis fazer para o nosso próprio bem, Maria.» Tantas coisas dentro da sua cabeça. Ouve-se, finalmente, Vaya Con Dios. Parece que o desejo musical foi atendido. A seu lado, a mulher da sua vida. «Claudio, a personagem de Vergílio Ferreira teve também a sua Oriana da Luz. Mas…»
– Não, levo-te a casa. Tomamos um café amanhã à tarde.
– Sim, é verdade. Pedimos mais duas taças?
– Sim.
Gil faz um zapping pela televisão. Encontra as notícias de última hora. Baixa a música.
«– A palavra Zaire já não existe no mapa!, diz o rebelde Kabila. – Viva a República Democrática do Congo!»
«– Um verdadeiro atestado de qualidade!, repetem os ilustres especialistas estrangeiros, convidados para assistir à inauguração de um novo museu em Portugal. O ministro da cultura não está presente.»
Os clientes da tasquinha exultam. Maria diz: – Moçambique ali tão perto…
Octávio diria se estivesse por perto: – Merda de socialistas! Está comprovado. Um ministro socialista nunca viria assistir à inauguração de um novo museu!
Mário diz profético: – Um dia, um governo de direita eliminará o próprio ministério da cultura. Os diamantes ali tão perto… vendidos aos chineses! Adeus amor…
Maria sussurra-lhe ao ouvido até que ele perde a consciência: – The diamonds are forever… 


[Telenovela mexicana rodada em 1997 e actualizada em 2015]
Claudio Mur

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