quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Cranioclast



'Vanorum Mare'
Cranioclast
From 'Cris Con Tala' (1987)
Label ADN

Dentro da música industrial-ambiental,
os Cranioclast são das melhores bandas que conheço.
Muito bons também a nivel gráfico.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Reconhece o teu buda

-- Então Rui, teve alguma ideia para decorar a caixa?
-- Sim professora. Trouxe um buda! Até pensei numa frase-chave.
-- Qual?
-- Reconhece o teu buda. Porque o buda está dentro de nós.
-- Boa. Vamos forrar a caixa e o buda com gesso. Porque é preciso cuidar...
-- Sim. Podemos reconhecer as coisas mas, se não tratarmos delas, as coisas estragam-se. Fiz este desenho para decorar o fundo da caixa: um homem a pescar, a contemplar com paciência...
-- Gosto.




sábado, 26 de dezembro de 2015

O fósforo e a açucena vermelha

'
O espírito olhou para fora da água, que se agitou e saltou em ondas alterosas; estas precipitaram-se no abismo, cujas fauces negras se abriram, ansiosas de as engolir. Como vencedor triunfante, o rochedo de granito elevou a sua cabeça coroada de picos, protegendo o vale, até que o sol o acolheu no seu seio maternal, rodeando-o com os seus raios, como se fossem braços ardentes, e aquecendo-o e iluminando-o. Então, milhares de germes, que dormiam um sono profundo debaixo da areia, despertaram, estenderam as folhinhas e os talos para saudar a mãe e, como meninos alegres que brincassem numa pradaria, fizeram surgir os seus botões, que, por fim, se abriram, acariciados pela mãe e cobertos de mil matizes, qual deles o mais belo. No centro do vale ergueu-se uma colina negra, que se movia como o peito de um homem agitado por malignas paixões. Do abismo subiam as emanações, reunindo-se em massas enormes e esforçando-se por ocultar o rosto da mãe; mas, então, rebentou a tormenta, que as afastou dali, e, quando o raio límpido voltou a iluminar a colina negra, brotou dela uma açucena vermelha, que abriu as folhas como lábios dispostos a receber o beijo da mãe. No vale surgiu uma luzinha brilhante: era o jovem Fósforo, e, ao vê-lo, a açucena exclamou, cheia de ansiedade:
-- Sê meu para sempre, formoso jovem. amo-te, e morreria se me abandonasses.
O jovem respondeu:
-- Serei teu, linda flor, mas terás de abandonar o teu pai e a tua mãe, como uma filha bastarda; não voltarás a ver os teus amigos, quererás ser maior e mais forte do que tudo o que te alegra e enche de regozijo agora. O entusiasmo que enche o teu ser servir-te-á de tormento e de martírio, pois o pecado dá origem a outros pecados, e a grande alegria que acende a chispa que lanço sobre ti é a dor sem esperança em que te sumirás, para renasceres com uma forma estranha. Essa chispa é o pensamento!
-- Ai! -- exclamou a açucena. -- Não poderei ser tua com o ardor que me abrasa? Poderei amar-te mais ainda e contemplar-te, se me aniquilas?
Beijou Fósforo, e, como que penetrada pela sua luz, viu-se rodeada de chamas, das quais saiu um novo ser, que não tardou muito em movimentar-se pelo vale, sem se preocupar com os camaradas jovens nem com o jovem amante. Este lamentava o seu amor perdido, pois continuava a amar a açucena no vale solitário, e os rochedos de granito inclinavam as cabeças, comparticipando nos lamentos do jovem.
'

,páginas 31-32
"O vaso de ouro"
E.T.A. Hoffmann [1776-1822]
em 'Grandes contos da literatura universal -- Hoffmann'
Edição Ediclube 1990


sexta-feira, 25 de dezembro de 2015


(não sei o nome do autor do desenho)

Endrominando um sobrinho

-- Tio, também vou receber uma prenda tua?
-- Vais! O pai natal telefonou esta semana ao tio e deu-me um presente para te dar...
-- Qual é o nº do pai natal?
-- Não sei, ele ligou de nº privado...

sábado, 19 de dezembro de 2015

Cais da Alfândega, Porto

Junto ao rio, 
atrás do parque de estacionamento.


aguarela sobre desenho impresso a laser
ZMB
2015

 desenho a caneta preta em 2013
colorido com pastel e cera em 2015
ZMB

quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Heliotrópios, malmequeres, Olho Que Tudo Vê:
bolor em cartas que não chegam ao destino,
em cartas que perdeste o interesse em escrever

'
Foi para o seu quarto: uma carta em cima da mesa saltou-lhe à vista. "Ah, de Tánia!" pensou, e ficou alegre; mas a carta era da aldeia, do pai. Litvínov quebrou o selo grande e duro e começou a ler... Mas um odor forte, muito agradável e conhecido chegou-lhe às narinas. Virou-se e viu, num copo de água, à janela, um grande ramo de heliotrópios frescos. Litvínov curvou-se sobre as flores um pouco espantado, tocou-lhe, cheirou-as... Lembravam-lhe qualquer coisa, qualquer coisa muito remota... mas não sabia o quê. Chamou o criado e perguntou-lhe donde tinham vindo as flores? O homem respondeu que tinham sido trazidas por uma senhora que não quis deixar o nome mas disse que ele. "Herr Zluitenhof," saberia pelas próprias flores quem ela era. Litvínov de novo pareceu recordar... Perguntou ao criado que aspecto tinha a senhora. O homem explicou que era alta e bem vestida e que usava um véu sobre o rosto.
"Provavelmente, uma condessa russa," acrescentou.
"Porque pensa isso?" perguntou Litvínov.
"Deu-me dois florins," respondeu o criado, rindo.
Litvínov mandou-o embora e durante algum tempo ficou a pensar em frente da janela; por fim, no entanto, desistiu e começou de novo a ler a carta da aldeia. O pai despejava os seus habituais queixumes, garantia que ninguém queria trigo nem dado, que os servos tinham perdido todo o respeito, e que o fim do mundo não devia tardar. "Podes acreditar," escrevia entre outras coisas, "que fizeram mau olhado ao meu cocheiro, o pequeno calmuque, lembras-te? Certamente teria morrido e eu ficaria sem cocheiro, mas algumas pessoas bondosas aconselharam-me a mandar o doente a Ryazan, a um padre que é um ás a curar casos destes, e realmente pô-lo bom, e em confirmação disso envio a carta do padre, como prova." Litvínov leu o documento com muito interesse. Nele se afirmava que "o servo doméstico Nikanór Dmítriev estava doente de uma doença inacessível à medicina e que essa doença era devida a gente má; mas a causa era ele próprio, Nikanór, por não ter cumprido uma promessa feita a certa rapariga e por isso ela, por meio de outras pessoas, tornou-o incapaz para tudo, e se eu não o ajudasse pereceria sem dúvida como um verme miserável; mas, confiando no Olho Que Tudo Vê, vim em auxílio da sua vida; e como o consegui é um segredo; e Vossa Execelência que diga a essa rapariga que não volte a fazer essas coisas más e até será bom ameaçá-la para que não possa fazer nada malévolo contra ele."
Litvínov meditou algum tempo sobre este documento; trouxera até ele, das estepes remotas, a escuridão cega da vida bolorenta, e pareceu-lhe estranho que estivesse a ler aquela carta precisamente em Baden.
'

, página 63-65
"Fumo"
Turguiënev
Tradução Manuel de Seabra
Edição Editorial Futura, 1974

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Quando soube do trágico fim do seu apaixonado,
suicidou-se, comendo uma pizza industrial.

'
Enquanto comíamos perguntei a Marie, como é que o criado podia ser empregado num café antes de morrer, se era marinheiro. Mas ela não se perturbou com tão pouco:
-- Era, evidentemente, durante as licensas. Uma vez em terra, vinha ver a amante, que lá trabalhava. E, por amor, servia com ela os copinhos de vinho branco e os cafés cremes. O amor faz fazer grandes coisas. E a amante, que foi feito dela?
Quando soube do trágico fim do seu apaixonado, suicidou-se, comendo uma pizza industrial.
Em seguida Marie quis saber como viviam as pessoas em Moscovo, uma vez que acabava de me atribuir a nacionalidade russa. Disse-lhe que ela própria também devia saber, visto que era minha filha. Então inventou uma nova história, de dormir em pé:
-- Não, nós não morávamos contigo. Fomos raptados por saltimbancos, Jean e eu, quando éramos ainda bebés. Vivemos em caravanas, percorremos a Europa e a Ásia, mendigámos, cantámos, dançámos em circos. Os nossos pais adoptivos obrigavam-nos mesmo a roubar dinheiro e coisas nas lojas.
-- Quando desobedecíamos, castigavam-nos com crueldade: Jean tinha de dormir no trapézio voador e eu na jaula do tigre. Felizmente o tigre era muito amável; mas tinha pesadelos e rugia toda a noite: isso acordava-me em sobressalto. Quando me levantava pela manhã, não tinha dormido o suficiente.
-- Tu, durante esse tempo, tu corrias o mundo à nossa procura. Ias todas as noites ao circo -- um circo novo em cada noite -- e andavas pelos bastidores para interrogar todas as crianças que encontravas. Mas possivelmente olhavas sobretudo para as artistas... Foi só hoje que nos reencontrámos.
Marie falava muito depressa, com uma espécie de convicção antecipada. De repente a excitação passou-lhe. Reflectiu um momento, subitamente sonhadora, depois terminou com tristeza:
-- E ainda não temos a certeza de nos termos encontrado. Possivelmente não somos nós, nem tão pouco tu...
'

, páginas 67-69
"Djinn"
Alain Robbe-Grillet
Edição Livros do Brasil

sábado, 12 de dezembro de 2015

Espaço T

Agora sou um utente do Espaço T (http://www.espacot.pt)
Para quem não conhecer é uma associação que presta apoio psico-social
a camadas desprotegidas da população.
O Espaço T existe há mais de vinte anos no Porto.
Podem ler a sua missão declarada aqui.
Eu vou frequentar cinco horas semanais num atelier de desenho e pintura.
Este foi o meu primeiro trabalho: 
caneta preta, marcador e pastel sobre papel A3


quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Filtrando sucessivamente as escamas do real até ficar somente o que não se vê.

'
O Escritor sonhava pensando que o sonho é invisível. Que Rafaela fazia com os seres o que sua mãe fizera com a pintura. Filtrando sucessivamente as escamas do real até ficar somente o que não se vê. E ser a parte obscura aquela onde estalamos os dedos, chamar o fogo e o gelo, e depois o fogo derreter o gelo e a água apagar o fogo. Não se trata de desumanizar a arte, trata-se de lhe dar um canal propício para o que já somos sem saber. Pintar o corpo único já se torna inócuo, diria ela levitando, tens vários corpos em cima da mesa e se não os vês é porque estás a mudar de pele, a serpente zanga-se contigo e por isso vem tanta gente perguntar-me o significado dos meus versos. No fundo querem circular mas falham os pés, são assim as pessoas e as artes malabares. Eram respostas como estas, entre o cínico e o genuinamente interessado, que faziam da mãe de Rafaela o centro da sala onde não havia centro. Menos luz.
O Escritor parou. O livro continuava a ser escrito. Pensou em Rafaela e no que ela se tornava, feita de homens azuis e bruxas, de uma Criança que morria criança, de um Homem Azul que noutro dia visitei e ainda sabe disparates que me fazem sorrir, de uma velha que era feita de todas as lições que não cabem nos dedos de uma mão agrafada só por dentro. O Escritor pensou que o seu amor podia abarcar o lago maior. Rafaela tornava-se uma base de dados dos seres que nos respiram perto, os mortos acabados de morrer e que Maria amparava na sua morna temperatura; e os que o Escritor fazia coincidir nas páginas de um livro que o obrigavam a escrever. Maria,a branca, nem ela imune ao triste comércio das sombras, o desvario tolo dos comandos que agora ordenham o mundo como uma vaca que nós todos conhecemos e tratamos.
'

, página 112
"A resistência dos materiais"
Rui Costa
Edição exodus, Jan 2008



«Uploaded for my mother. :)», says the Wizard of Ass

sábado, 5 de dezembro de 2015

A dança do fogo


'Fire dance'
técnica mista sobre papel
59,4cm por 42cm
terminado em 2015
ZMB

referencia este (em baixo )desenho de 2008
que por sua vez referencia este trabalho de 1995/1996,
um dos meus primeiros: http://zmb-mur.blogspot.pt/2014/05/fire-dance.html

Fire dance

Em Miragaia, Porto


Largo de Artur Arcos
Porto, Novembro 2015
Mural da autoria de Daniel Eime

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Trompete @ São Domingos


'Trompete @ São Domingos'
óleo sobre tela
60cm por 70cm
2015
ZMB

Eu tenho estado a fazer esta série de quadros sobre artistas de rua
baseado em fotografias, que vou tirando com o telemóvel, a artistas 
que pela sua presença regular se têm transformado aos meus olhos
quase em ex-libris desta polis onde vivo.
Neste o caso o quadro (sempre apenas a representação duma realidade) tem por modelo
a ampliação de uma secção de fotografia em que a única oportunidade de a tirar
foi a contra-luz, E assim, o que posso afirmar é o músico pintado
não se assemelhar à realidade.
Este quadro representa assim uma ficção baseada numa realidade.

Mas para dar ênfase ao músico como persona viva e real contarei uma história real:
Para quem não conhece a zona da Ribeira no Porrto pode ficar a saber
que a paisagem é dominada pelos tabuleiros superior e inferior da ponte Luiz I.
Ao nivel do solo, existe uma rua-passeio de trezentos metros que termina na ponte.
Ao se observar com regularidade o movimento das gentes a caminhar, 
repara-se também no movmento das esplanadas e das lojas turísticas que fecham o dia.
Por volta das oito da noite um músico tocando melodias tradicionais começa
geralmente o seu espectáculo para os clientes do seu restaurante.
É assim todos os fins de semana,
até que um dia o som de um trompete invade triunfante o ar deste anfiteatro natural.
Toda a gente o ouve amplificado mas ninguém o identifica, ninguém
sabe donde vem o som, até o músico com o seu cavaquinho na esplanada
olha impaciente por alguém lhe roubar o protagonismo: afinal ele quer começar
a sua actuação e aquele som do trompete...
«rai'sme partam, mas donde vem este trompete» pergunta,
e eu rio-me e toda a gente se ri até o próprio músico se ri
quando descobrimos que o local donde o trompetista triunfa é a ponte,
lá bem no alto do tabuleiro superior da ponte, a mais de cem metros de altura
Magistral.


segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Fica alma fica


A minha segunda exposição de 2008 foi realizada no Clube Literário do Porto.
Tinha conhecido o espaço no ano anterior através de uma sessão de poesia de choque
dita por A. Pedro Ribeiro ( http://tripnaarcada.blogspot.pt )
Hoje em dia, o edifício com varandas para o rio é um hostel
mas na altura tinha vários espaços para exposições, um bar e uma biblioteca no rés-do-chão.
Acabei por perguntar se podia expor e olharam para a agenda 
e marcaram a próxima data disponível: Agosto. 

Se a exposição realizada seis meses antes no Púcaros tinha como mote
um sentimento de esperança no progresso
o título desta (Fica alma fica) era mais sombrio.
O Al Berto tem um verso que diz «vai alma vai até onde quiseres ir»
e eu sempre interpretei o verso como sendo ele a dar liberdade à alma amante de partir.
Ora eu ganhara nos últimos meses a consciência de que eu próprio
não poderia dizer à alma amante para partir
mas sim quase implorar para que ficasse.
Eu era o poeta. Essa alma era a minha consciência.
A diferença e distância entre um Eu e um Outro tinha sido abolida.
Eu era o Outro e esse Outro era minha consciência.
A minha consciência emanava e entrara em feedback com o meio ambiente e social.
Eu sentia-me em processo de dissolução mental 
e com medo cometi muitos erros,
também de julgamento também de linguagem degradada e boçal,
uma linguagem e um tom ofensivo: «cus e cornos na espuma da garganta
      a raiva de um cão que tanto ladra que ganha coragem para morder».
Nem dois meses se passaram após esta exposição e eu atingi um ponto de não-retorno
que me levou a um internamento compulsivo.
Hoje estou minimamente recuperado.

Os quadros apresentados estão reunidos nesta etiqueta:

sábado, 28 de novembro de 2015

Declaração de voto

Ontem ao anoitecer fui ao supermercado comprar alimentos e quando voltei reparei que à minha frente caminhava lentamente o Valdemar, professor de música. Andava devagar como se passasse o tempo. Tive a sensação de saber onde ele iria estacionar o seu devaneio.  Era até minha intenção assim que chegasse a casa com a saca do supermercado, comer quaquer coisa e ir tomar café, antes do jantar, a um bar ao qual já não ia há um mês, Era para lá que o Valdemar se dirigia, tinha a certeza. Já não o via há dois ou três meses. Mas quando lá cheguei, o Valdemar não estava lá. Pedi café e quando fui ao bolso para tirar as moedas para pagar, o dono disse: «Está pago, tens aqui três piratas pagos na tua conta.» Foi aí que reparei que já lá não ia há bastante tempo, o dono até tinha mudado o visual, pelo que perguntei surpreendido: «Mas quem me pagou?» Ele respondeu: «Aquele que te comprou um quadro e que vem aqui, tem perguntado por ti quando cá vem e disse para deixar pago um pirata para o pintor.» Reconheci de imediato o Valdemar na personagem do ilustre benfeitor e sorrindo pedi um pirata ao dono. É preciso dizer que um pirata, também conhecido por lambreta, é um copo pequeno de cerveja a pressão, custa o mesmo que um café, pelo que o dono serviu-me o copo e acrescentou: «Pronto, dois piratas! Ele esteve aqui há pouco.» É preciso dizer que eu fiquei com o sorriso estampado no rosto, afinal um gajo chega a um local e vê três piratas ao dispor, pagos por um amigo que já não vê há meses, uau, sentei-me na mesa, puxei de um cigarro e liguei-lhe, ele estava por perto e voltou ao bar. 
Cumprimentámo-nos, ele sentou-se, fumou um cigarro dos meus, eu agradeci-lhe os piratas já pagos. Começámos a falar, ele sendo professor falou das aulas e da alegria que alguns alunos lhe davam por suplantarem quase o mestre, outros nem por isso, «é uma disciplina facultativa.» disse. Perguntou-me o que eu achava da solução governativa encontrada para o país, e eu concordei que agora havia hpóteses, que este governo é melhor que o anterior. Falou que a prova dos alunos no quarto ano talvez já não se realize para os alunos este ano lectivo, disse-me que era uma despesa enorme, fazer o exame geral dos alunos numa escola diferente, obrigá-los a deslocar-se e a ser avaliados por outros professores. Nesta fase da conversa tive reticências e dei a minha opinião apesar de não saber muito do assunto, eu pensava que eram exames feitos na própria escola, tentei dar o exemplo da minha sobrinha: na escola faz vários testes durante o trimestre que, mesmo não contando para nota, a fazem progredir e mostrar ao professor que ela sabe e aprende o que lhe ensinam nas aulas. A opinião que tentei dar foi a de os alunos precisarem de algum modo ser avaliados e estar apenas contra o facto de se gastar dinheiro e logística em fazer destes exames uma prova nacional realizada numa escola externa e avaliada por professores que não conhecem os alunos, tentei dar a opinião de ser em cada escola e na relação dos professores com cada aluno na sala de aula e com testes periódicos, com as notas do trimestre e a nota final do ano dadas em função da avaliação dos professores que estiveram em real contacto com o aluno. 
Mas esta última frase é uma racionalizção daquilo que disse de facto, ele ficou a pensar que eu era favor dos exames e, logo, era um gajo de direita até porque a coligação, agora na oposição, foi o único partido que votou contra a abolição dos exames no quarto ano. 
A verdade é que não sei bem como está hoje o ensino, as coisas mudaram, no meu tempo parece-me que era melhor. Disse-lhe que no meu tempo, era possível passar com três negativas, o que fazia com que alunos que não fossem bons, por exemplo, a matemática e educação física podiam ainda assim passar de ano se obtivessem aproveitamento às outras disciplinas, e assim se iam encaminhando, começando a entrever um futuro através da educação, seguindo o que gostavam mais e tinham melhor aproveitamento. Ele respondeu que talvez eu achasse que os professores não sabem ensinar. Tentou deste modo uma rasteira, eu compreendi no momento mas ignorei, é impossível falar de educação com um professor não sendo eu um professor, esse professor é levado a pensar que nós não respeitamos o acto de professorar e eu respondi impulsivamente com o que ele achou uma observação naturalista: «Há alunos que simplesmente não querem aprender!» 
Tentava eu dizer que sem avaliação os alunos não sentem motivação para estudar, alguns até faltam às aulas, não aprendem nada, disse-lhe: «Há uns anos um miúdo na altura com dezoito anos mal sabia ler o jornal, tentava ler e o mais que fazia era soletrar.» Ele respondeu que talvez esse aluno tivesse algum problema cognitivo. O que eu percebi foi que ele chamou deficiente ao miúdo quando eu vejo uma falta de atracção na escola levando ao abandono desta, levando «à escola da vida». 
Não lhe disse, não lhe soube dizer mas é possível que não haver avaliação, passando os alunos quer saibam ou não, impeça apenas que alunos cábulas, que chumbavam sucessivamente de ano, sejam fonte de terror ou mesmo de fascínio e inspiração para os alunos mais novos. 
Concluindo a minha racionalização: acho que deve haver avaliação periódica pelo próprio professor dentro da própria escola, sendo a nota final de ano o resultado da aprendizagem de cada ano. Estou apenas contra a avaliação externa por professores que não conhecem os alunos. Muita coisa pode correr mal, o ensino devia ser universal e igual em cada escola mas há diferenças na qualidade de ensino entre cada escola, aos dez anos de idade é muito cedo para sujeitar as crianças a uma prova universal quando o ensino acaba por não ser igual para todos. 
Por isto e também por pragmatismo, concordo com a abolição dos exames no quarto ano, sendo esta a minha declaração de voto como cidadão.

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

A imaginação já é para servir de pedreiro


Este é o flyer que fiz para a minha primeira exposição no Porto em 2008
(a estreia tinha sido em Rio Tinto no ano anterior)
num bar que agora existe com outro nome e outro dono.
O Mário Cesariny tem um verso que diz:
'A imaginação ainda não é para servir de pedreiro'.
Eu resolvi afirmar com o meu título que era já tempo de construir a casa
e deixar para trás a desesperança que o Cesariny transpirava.
Foi também um título criado para eu próprio ganhar raízes e acordar para a vida.
Os quadros apresentados encontram-se nesta etiqueta,
as fotografias são de péssima qualidade e
alguns quadros precisam de serem recuperados.



quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Manu Chao clandestino


Arte psicodigital


com autoria de Juan Brufal, argentino.

Novo caminho


No livro 'O homem duplo' de Philip K. Dick a agência governamental,
ao mesmo tempo centro de recuperação pelo trabalho
para onde se vai tratar o agente de narcóticos caído em desgraça por abusar da substância D,
chama-se New Path.
Lendo o livro percebe-se que este centro é ao mesmo tempo um produtor da própria substância.

É como bombardear o Isis e comprar-lhe o petróleo.

No Porto, junto ao rio, existem as Escadas do Novo Caminho.
São mais de cem degraus.
Ideais para quem quer perder peso!


tinta de aguarela sobre desenho impresso
2015
ZMB


Desenho a marcador preto (2013)
colorido com pastel de óleo (2015)
ZMB

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Auto-retrato bruto

Na semana passada um grupo de utentes, onde me incluo,
teve a oportunidade de, numa parceria do CH S.João com o Museu de Serralves,
visitar o museu e receber uma visita-guiada à exposição da Helena Almeida.

A Helena Almeida é uma pintora cujo trabalho é
«desenhar o desenho, pintar a pintura» segundo o nosso guia-intérprete
ou seja, ela trabalha o processo de criação e documenta-o em séries fotográficas.
Numa destas, ela fotografa-se a pintar com pincel uma superfície-tela- que é um espelho
e adiciona-lhe à posteriori uma pincelada de azul
«um azul que na verdade são dois tons de azul misturados»
e que me parece semelhante ao azul Klein.
(Em casa, ao pesquisar na net encontrei um artigo do Guardian
em que se sugere que este tom azul é apenas semelhante ao azul Klein 
e que terá sido usado por Helena Almeida para protestar contra
o papel atribuído à mulher nas obras de Yves Klein.)
Uma obra exposta é um retrato fotográfico a preto onde
a autora se encontra de boca aberta e com ar de espanto ou surpresa.
O interior da boca aberta é «azul», dir-se-ia que canibaliza azul.
Outra ideia encontrada na exposição é a de linha preta e 
a sua relação com o espaço da folha de papel e a sua tridimensionalidade.
Há um trabalho em que um tufo de riscos a preto sai para fora do papel na forma de arame
criando um arbusto.
A exposição contém ainda desenhos e vídeo e telas tridimensionais.

No final da visita-guiada, fomos até uma sala do serviço educativo
para um breve workshop em que nos convidaram a realizar trabalhos
relacionados com o que tínhamos vistos.

Um colega fez uma interpolação de linha em fio de lã com linha desenhada a marcador;
Ûma colega amarrou-se com fio e fotografou-se a dançar;
Outro fotografou-se a interagir com um novelo emaranhado de fio vermelho e um espelho
e depois construi uma forma tridimensional de papel desenhado a vermelho e fio de lã;
eu realizei o trabalho mostrado em baixo:
Comecei por pegar num novelo de lã vermelha  
e colocar o fio na forma de um coração sem cortar o novelo, 
este transformou-se na metáfora da minha mosca-barba 
e o desenho evoluiu para um auto-retrato desenhado em frente a um espelho 
que coloquei verticalmente em frente à folha de desenho.
Para dar um tom de humor coloquei-me uma coroa de fio branco na cabeça 
e adicionei-me um fato e gravata azul.
Interessante o pormenor da fita-cola: parecem cicatrizes.

Penso que este trabalho inspirado no que vi da obra da Helena Almeida
se pode considerar um trabalho de 'arte bruta' ou outsider art.


'Auto-retrato bruto'
marcador, fita-cola e fio de lã sobre papel A3
2015
ZMB

Alvin Lucier - The duke of New York



Album: Bird And Person Dyning
Label: Cramps Records ‎-- CRSLP 6111
Released: 1976

"The Duke Of New York" was composed in 1971, and this version was recorded th 19th of February 1972, at the Metropolitan Museum of Modern Art, New York.

Synthesizer -- Nicolas Collins, Stuart Marshall
Voice -- Alvin Lucier

sábado, 21 de novembro de 2015

Uma lavagem basfema do cabelo

'
-- Oh, Tom; desculpa-me, mas essa tua cabeça está simplesmente assustadora! Por favor, deixa-me penteá-la um pouco!
Agarrando-o pelos ombros, atirei-o para uma cadeira, com o rosto virado para a parede, agarrei os seus pente e escova, pus-me atrás dele e comecei a trabalhar. Ele tremia como uma criança, e não sabia o que eu estava a fazer mais do que se tivesse levado uma pancada na cabeça. Ora, a cabeça de Tom era um objecto raro. O seu cabelo, que era notavelmente espesso, parecia arame. Quando cortado bastante curto, projectava-se de todo o seu couro cabeludo como os espinhos de um ouriço-cacheiro. Uma das queixas preferidas de Tom fora a de que ele nunca conseguia fazer nada àquela cabeça. Eu não encontrei nenhuma dificuldade -- fiz-lhe algo, embora core em pensar no que foi. Fiz algo que temi que descobrisse se olhasse para o espelho, por isso tirei descuidadamente o meu relógio, abri-o, apressei-me e gritei:
-- Por Júpiter! Thomas -- desculpa a imprecação -- mas estamos atrasados. O teu relógio está todo errado; olha para o meu! Aqui está o teu chapéu, companheiro; anda. Não há um momento a perder!
Colocando o chapéu na sua cabeça, empurrei-o para fora de casa, com efectiva violência. Cinco minutos depois, estávamos no templo, com muito tempo de espera à nossa frente.
Disseram-me que, nesse dia, as celebrações foram especialmente interessantes e impressionantes, mas eu tinha outra coisa em mente -- estava preocupado, ausente, distraído. Eles poderiam ter alterado a habitual exibição profana em qualquer aspecto e em qualquer grau, e não o teria notado. A primeira coisa que percebi claramente foi uma fila de «convertidos» ajoelhando-se diante do «altar», com Tom na esquerda da fileira. Então, o reverendo Mr. Swin aproximou-se dele, molhando conscientemente os seus dedos numa pequena taça de barro com água como se tivesse acabado de jantar. Eu estava muito abalado: não conseguia ver nada de forma distinta por entre as minhas lágrimas. O meu lenço estava no meu rosto -- maior parte dentro dele. Viam-me a soluçar espasmodicamente, e envergonho-me ao pensar quantas pessoas sinceras erroneamente seguiram o meu exemplo.
Com algumas palavras solenes, cujo conteúdo não percebi muito bem, excepto que soavam como blasfémias, o pároco ficou em frente de Thomas, lançou-me um olhar de entendimento e então, com uma inocente expressão facial, cuja recordação me enche até hoje de remorsos, entornou, como se por acidente, todo o conteúdo da taça na cabeça do meu pobre amigo -- a cabeça em cujo cabelo eu tinha espalhado uma pródiga quantidade de pó Seidlitz[*]!
Confesso-o, o efeito foi mágico -- qualquer um que estenha estado presente dir-te-á o mesmo. O cabelo de Tom fervilhava -- borbulhava -- espumava, e bebava como um cão louco! Fumegava e silvava, com furiosos jorros e esguichos! Num segundo, ficara maior e mais branco do que um pequeno monte de neve. Ondulava, e agitava-se, e borbotava, e transbordava, e cuspinhava -- lançava flocos plumosos como se saídos de um cisne baleado! A espuma escorreu, tapando o seu rosto, e caiu sobre os seus olhos. Foi a lavagem do cabelo mais blasfema da época!
Não consigo relatar a comoção que isto produziu, nem o faria se conseguisse. Quanto a Tom, pôs-se de pé com um salto e cambaleou para fora do edifício, tacteando o caminho por entre os bancos da igreja, soltando profanidades estranguladas e arfando como um peixe fora de água. Os outros candidatos ao baptismo também se levantaram, abanando as cabeças, como se para dizer «Não, não vais, meu querido» e deixaram, todo em conjunto o templo.
'

* Nota do Tradutor: O pó Seidlitz era um laxante que provocava efervescência quando adicionado a água
[retirado do conto "O batismo de Dobsho"]
Ambrose Bierce
in "Os contos completos de Ambrose Bierce"
Tradução de João Reis
Edição Eucleia Edtora

Acabei de ler.
São 92 contos em 600 páginas com letra miúdinha.
Pena ter de levar com o acordês dos «espetadores» e outros.
Nestas minhas transcrições tenho teclado ignorando o AO.

Ambrose Bierce [1842-1914], 
além de ter um sentido de humor refinado,
 é também um escritor do outro mundo:
Mortos, vivos, fantasmas, assombrações, 
casas abandonadas, guerras, naufrágios.

Um detalhe do próximo quadro, 
brevemente finalizado

terça-feira, 17 de novembro de 2015

Parece-me que o Tarantino encontrou aqui inspiração

'
-- Meu caro amigo, a leviandade dos teus modos não oculta completamente a hedionda imprudência do teu desejo; mas, infelizmente, eu já tinha decidido contar-te o que desejas saber, e nenhuma manifestação da tua falta de merecimento para o ouvir alterará a minha decisão. Sê suficientemente bom para me dares a tua atenção e ouvirás tudo acerca do assunto.
«Este relógio esteve na minha família durante três gerações, antes de ser meu. O seu proprietário original, para quem foi feito, era o meu bisavô, Bramwell Olcott Bartine, um fazendeiro rico da Virgínia, no tempo colonial, que era um conservador tão fiel quanto nenhum outro, passando as noites acordado a imaginar novos tipos de maldições para a cabeça de Mr. Washington, e novos métodos de ajudar a estimular o bom Rei Jorge. Este valoroso cavalheiro teve, certo dia, a grande infelicidade de realizar um serviço de importância capital para a sua causa, que não foi reconhecido como legítimo por aqueles que sofreram as suas desvantagens. Não importa o que foi, mas entre as suas consequências esteve a detenção do meu excelso antepassado, certa noite, em sua própria casa, por um grupo de rebeldes de Mr. Washington. Foi-lhe permitido dizer adeus à sua chorosa esposa, e fizeram-no marchar para a escuridão, que o engoliu para sempre. Nem a mais pequena alusão do seu destino foi alguma vez encontrada. Depois da guerra, o inquérito mais diligente e a oferta de grandes recompensas falharam em entregar qualquer um dos seus captores ou qualquer facto relativo ao seu desaparecimento. Desaparecera, e isso era tudo.»
Algo nos modos de Bartine, que não estava nas suas palavras -- eu dificilmente saberia o que era --, levou-me a perguntar:
(...)
-- Isso foi tudo o que aconteceu?
-- Não... houve algo mais. algumas semanas após a detenção do meu bisavô, o seu relógio foi encontrado pousado no alpendre da porta principal de sua casa. Estava embrulhado numa folha de pepel de carta, contendo o nome de Rupert Bartine, o seu único filho, e meu avô. É esse relógio que uso.
(..) Bartine retomou:
-- Sinto algo invulgar em relação a este relógio -- um tipo de afecto por ele, gosto de tê-lo junto de mim, embora, em parte pelo seu peso, e em parte por uma razão que irei agora explicar, raramente ande com ele. A razão é esta: todas as noites, quando o tenho comigo, sinto um desejo inultrapassável de o abrir e consultar, mesmo se não consigo pensar em nenhuma razão para desejar saber as horas. Mas, se lhe cedo, sou preenchido com uma apreensão misteriosa, no momento em que os meu olhos pousam sobre o mostrador -- uma sensação de calamidade iminente. E isto torna-se mais insuportável quanto mais próximo das onze horas -- segundo este relógio, independentemente de qual seja a verdadeira hora.
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[retirado do conto "O relógio de John Bartine"]

Ambrose Bierce
in 'Os contos completos de Ambrose Bierce'
Tradução de João Reis
Edição Eucleia Editora




sábado, 14 de novembro de 2015

O ódio é estéril



Henryk Mikołaj Górecki (1933-2010). 
Symphony Nº 3, Op. 36, "The Symphony of Sorrowful Songs", 1976.
Video Performance and Documentary: http://youtu.be/UpyEXxlStVM
Performer: Dawn Upshaw. London Sinfonietta Orchestra, Conducted by David Zinman. 
Nonesuch Label, 1992

https://en.wikipedia.org/wiki/Symphony_No._3_(G%C3%B3recki)

Ouvi esta peça na rádio Antena2 
hoje por volta das 17h30 como comentário aos atentados em Paris.

O meu comentário é: O ódio é estéril
e nenhuma virgem quer um homem estéril 
no dito Paraíso pelo qual vocês morrem e assassinam.


quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Rio Tinto 2007

Arquivo neste post as imagens do folheto 
da minha primeira exposição de pintura organizada pela J. F. Rio Tinto
em 2007

(a capa)

(o interior)

Os trabalhos apresentados encontram-se arquivados nesta etiqueta:

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

sábado, 7 de novembro de 2015


Tinta de aguarela sobre impressão digital em papel
2015
ZMB


pastel de óleo e caneta preta sobre papel
2013/2015
ZMB

Uma daquelas grandes ideias que surgem à maioria dos homens apenas uma ou duas vezes na vida

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-- Homem ao mar!
Era isso que tentara dizer.
Houve uma corrida atabalhoada até ao convés superior, e toda a gente atirou alguma coisa sobre o parapeito do navio -- um flutuador salva-vidas, um galinheiro, uma corda enrolada, uma verga de mastro, uma vela velha, um lenço de bolso, um pé-de-cabra de ferro -- qualquer artigo movível que se pensou poder ser útil para um homem que se estava a afogar e que seguira o veleiro durante a hora que passara desde o alarme inicial no cesto da gávea. O navio foi, em poucos momentos, praticamente desguarnecido de tudo a que se pudesse facilmente renunciar e, tendo alguns passageiros excitáveis soltado os botes, não havia nada mais que pudéssemos fazer, embora o capelão tenha explicado que, se o infeliz cavalheiro na água não aparecesse passado um bocado, era sua intenção permanecer na popa e ler o ofício de defuntos da Igreja de Inglaterra.
Pouco depois, uma pessoa hábil lembrou-se de perguntar quem caíra borda fora e, para nosso grande desgosto, tendo sido todas as partes reunidas e a chamada feita, verificámos que todos os homens responderam ao seu nome, passageiros incluídos! O Comandante Troutbeck, contudo, defendeu que, num assunto de tão grande importância, uma simples chamada era insuficiente e, com uma encorajadora afirmação de autoridade, insistiu que todas as pessoas a bordo deveriam declarar-se presentes separadamente. O resultado foi o mesmo: não faltava ninguém e o comandante, pedindo desculpa por ter duvidado da nossa veracidade, retirou-se para a sua cabina, de forma a evitar mais responsabilidades, mas expressou a esperança de que, com o propósito de ter tudo devidamente registado no diário de bordo, o informaríamos de qualquer outra acção que pensássemos conveniente tomar. Sorri ao lembrar-me que, no interesse do cavalheiro desconhecido cujo risco de vida sobreestimáramos, eu atirara o diário de borda à água.
Pouco depois disto, senti-me repentinamente inspirado com uma daquelas grandes ideias que surgem à maioria dos homens apenas uma ou duas vezes na vida, e nunca ao vulgar contador de histórias. Depressa reuni novamente a equipagem do navio, subi ao cabrestante e falei-lhes da seguinte forma:
-- Companheiros de navio, houve um engano. No ardor de uma compaixão irreflectida, demo-nos a bastante liberdade com certos bens movíveis de uma eminente firma de armadors de Malvern Heights. Por causa disto, seremos, sem dúvida, chamados a prestar contas, se alguma vez tivermos a sorte de largar âncora em Tottenham Court Road, onde tenho uma tia. Acrescentaria força à nossa defesa se pudéssemos mostrar à consideração de um júri dos nossos pares que, ao escutar as sagradas sugestões de humanidade, agimos com uma pequena dose de senso comum. Se, por exemplo, conseguíssemos fazer com que parecesse que havia, realmente, um homem borda fora, que poderia ter sido confortado e amparado pela consolação material que tão prodigamente dispensámos na forma de artigos flutuantes que pertenciam a terceiros, o coração britânico encontraria nesse facto uma circunstância mitigadora, que eloquentemente intercederia a nosso favor. Cavalheiros e oficiais do navio, arrisco-me a propor que atiremos agora um homem pela borda fora.
O efeito foi arrebatador: a moção foi aprovada por aclamação e houve uma investida unânime para o então desgraçado marinheiro cujo falso alarme no cesto da gávea era a causa do nosso transtorno, mas decidiu-se, após reconsideração, substituir o Comandante Troutbeck, por ser menos útil no geral e mais passível de se enganar. O marinheiro cometera um erro de magnitude considerável, mas a inteira existência do comandante era, no total, um erro. Foi arrastado da sua cabina e atirado borda fora.
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[ retirado do conto 'O homem borda fora' ]
Ambrose Bierce
Tradução de João Reis
Edição Eucleia Editora, 2010

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Planeta tigre



Não posso aceitar ser o primeiro escritor a contar uma mentira só para manter o interesse do leitor

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A tempestade tornou-se cada vez mais violenta, até conseguir revoltar o Mudlark de tal forma que este começou a meter água pelo porão como se fosse um abstémio; de seguida, pareceu instantaneamente acalmar-se. Pode-se dizer, com justiça, o seguinte sobre uma tempestade no mar: quando acaba de partir os teus mastros, de arrancar o teu leme, de arrastar os teus botes e de fazer um belo buraco em alguma parte inacessível do teu casco vai, frequentemente, embora, em busca de algum novo navio, deixando-te sozinho para decidir quais as medidas mais adequadas a tomar em relação ao teu conforto. No nosso caso, o comandante achou adequado sentar-se na grinalda da popa, a ler um romance em três volumes.
Achei que estaria com uma disposição particularmente alegre ao ver que chegara a quase metade do segundo volume, no qual os amantes estariam obviamente a passar pelas dificuldades amorosas mais desesperadas e dilacerantes e, por isso, aproximei-me dele e informei-o de que o navio se estava a afundar.
-- Bem -- disse ele, fechando o livro, mas mantendo o indicador entre as páginas, de forma a marcar o lugar --, ele nunca serviria para muito após um abanão destes. Mas, bem, eu ... gostaria que simplesmente mandasses o imediato acabar com aquela reunião de orações. o Mudlark não é uma capela de marinheiros, creio eu.
-- Mas -- respondi, impacientemente -- não se pode fazer nada para diminuir o peso do navio?
-- Bem -- disse ele, pausada e reflectidamente --, tendo em conta que já não tem mastros para deitar abaixo, nem qualquer carga ... bem, podes lançar borda fora alguns dos passageiros mais pesados, se achas que servirá de alguma coisa.
Foi uma ideia feliz -- a intuição do génio. Caminhando rapidamente em frente, até ao castelo da proa, que, sendo a parte mais acima da água, estava cheio de passageiros, agarrei um velho cavalheiro corpulento pelo cachaço, empurrei-o contra a balaustrada, e lancei-o borda fora. Ele não tocou na água: caiu no vértice de um cone de tubarões que saltaram do mar para o encontrar, com os seus narizes reunidos num ponto, as suas caudas a tocar apenas na superfície. Acho improvável que o velhote se tenha apercebido do que lhe aconteceu. A seguir, arremessei uma mulher e atirei um bebé gordo para os ventos selvagens. A primeira foi levada para longe da minha vista pelos tubarões, tal como o velhote; o último, repartido pelas gaivotas.
Narro estas coisas exactamente como aconteceram. Seria muito fácil escrever uma bela hitória com este material -- contar como, enquanto estava ocupado a diminuir o peso do navio, fui tocado pelo espírito de auto-sacrifício de uma bela jovem, que, para salvar a vida do seu amado, empurrou a sua idosa mãe em frente para onde eu estava a trabalhar, implorando-me para levar a velha senhora, mas poupar, oh, poupar o seu querido Henry. Posso prosseguir, para contar como atirei, não apenas a velha senhora, como fora pedido, como também agarrei de imediato o querido Henry, e fi-lo voar para sotavento, até tão longe quanto podia, tendo começado por partir a sua espinha contra a balaustrada e arrancado uma dupla mão cheia dos seus cabelos encaracolados. Posso prosseguir, para declarar que, sentindo-me apaziguado, roubei então o bote grande e, levando a bela donzela, me afastei do navio condenado até à igreja de St. Massaker, Fiji, onde fomos unidos por um nó que posteriormente desatei com os meus dentes, quado a comi. Mas, na verdade, nada disto acnteceu, e não posso aceitar ser o primeiro escritor a contar uma mentira só para manter o interesse do leitor. O que realmente aconteceu foi isto: quando eu estava no tombadilho, a atirar os passageiros, um após outro, borda fora, o Comandante Abersouth, que terminara o seu romance, foi até à popa e lancou-me silenciosamente borda fora.
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[retirado do conto "Uma recordação de um naufrágio"]
Ambrose Bierce
in 'Os contos completos de Ambrose Bierce'
Traduçaõ de João Reis
Edição Eucleia Editora, 2010

terça-feira, 3 de novembro de 2015

Ping-pong literário

Em 2012, num sábado de evento cultural chamado 'Bairro dos Livros'
desloquei-me à casa de livros Unicepe no Porto
para ouvir uma troca de textos literários entre
Rui Manuel Amaral e Artur Paulino.
Sentei-me a ouvir, entre outros autores, Robert Walser
e aproveitei para fazer um desenho rápido da sala e seus intervenientes.

Em 2015, pintei com cera a folha do desenho original
e imprimi o desenho em papel de aguarela e colori com aguarela.

 traço a caneta e cor a lápis de cera
tamanho A4
2015
ZMB


aguarela sobre desenho impresso em papel de aguarela
tamanho A4
2015
ZMB

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

A língua errante

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Porém, nem mesmo depois de a pintura em pastel, emoldurada a dourado e paga com o salário de um mês, ter chegado ao domicílio do médico, se obteve o cobiçado quarto individual: a paciente e a acompanhante teriam de se contentar com uma só cama, num quarto comum de seis camas. Dormiriam juntas, na mesma cama, duas noites antes e duas noites depois da operação da idosa.
Noites de gemidos e espasmos. Por vezes, ouviam-se longas confissões crispadas, palavras saídas do sono e de parte alguma. Uma espécie de murmuração doente da noite. Não, não era a tranquilidade exigida pela fase preliminar e pela fase de convalescença da delicada intervenção cirúrgica.
A voz da idosa captava as atenções. Uma lamentação codificada, uma língua bizarra, incompreensível. Apenas a nora sabia que se tratava da língua iídiche, embora nem ela entendesse o significado daquelas estranhas palavras.
Durante o dia, a idosa da cama do lado da janela falava romeno, somente romeno. A normalidade do dia não anulava, porém, a estranheza da noite. As camponesas das outro cinco camas perscrutavam-na, desconfiadas, não ousando pedir qualquer explicação à jovem mulher que dormia na mesma cama com a pagã.
Mais uma noite e, mais uma vez, a mesma alienação sonâmbula. Um sussurro, primeiro, breves sinais guturais, seguidos pelo ritmo alerta de uma confissão tormentosa, secreta. Um vocabulário enigmático, queixumes e reprimendas, líricas doses de ternura destinadas aos iniciados. A nora escutava, tensa. Uma espécie de desabafo hipnótico e dolorido, numa língua errante. A voz de um oráculo ancestral exilado, arrancando à eternidade uma mensagem ora mórbida e obstinada, ora branda e indulgente, as singularidades de uma fonética bárbara, sectária, electrizando a escuridão.
O dialecto alemão ou holandês, dir-se-ia, envelhecido e adoçado por um dramático langor, as inflexões eslavas ou espanholas e as sonoridades bíblicas, um lodo linguístico que reuniu e transportou consigo afluentes de toda a espécie. A idosa contava aos antepassados e aos vizinhos e a ninguém os episódios da errância, um monólogo retorcido, por vezes, em queixumes e trepidações que não se sabia se eram brincadeira ou ferida. A odisseia da diáspora, o pânico do amor, a intimação da divindade, os medos do presente? A noite não permitia mais do que instantâneos codificados, confusos espasmos do desconhecido.
De manhã, como se nada tivesse acontecido, a paciente voltava à língua diurna, comum a todos.
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, página 127
"O regresso do hooligan"
Norman Manea
Edição Asa

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Epidemia


... digam lá muito alto a ver se dá para acreditar:
«Eu não, nunca me senti um alien. Ora essa!»

(Não sei identificar o autor desta imagem)

Os desenhos do paciente O.T.



Einstürzende Neubauten: Vanadium-I-Ching
from the album "Zeichnungen des Patienten O.T." (1983)

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Uma pintora dentro de uma moldura


the Painter in the Frame @SÖLWEG 2015

Uma fotografia da pintora e fotógrafa (entre outras artes e modos de viver)

Viktoria B. Daniau -SÖLWEG-


quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Todos nós somos o mundo


Em 2013, numa tarde saí de casa com auscultadores nos ouvidos oferecendo-me
Joan La Barbara e a sua 'Shaman Song'.
Acabei por entrar no Parque do Covelo e sentei-me 
com uma caneta preta a desenhar o que via.
foi digitalizado para utlização futura.

Em 2015, pintei a folha original com lápis de cera e também pastel de óleo,
a cor verde garrafa das ervas, (em cima).
E imprimi o desenho digitalizado em papel de aguarela e realizei a aguarela (em baixo)




music by Joan La Barbara
art (in this video) by Kati Astraeir

terça-feira, 13 de outubro de 2015



Geamparallele · Nomad's Land

Tzigane - Gipsy (Air Mail Music Collection)

℗ Sunset-France

Released on: 2005-10-31


segunda-feira, 12 de outubro de 2015

O princípio de um novo quadro


(em tela)

Casa da Horta 2014 / 2015


'Casa da Horta 2014'
Lápis de cera sobre traço preto em papel
ZMB

Em 2014, fiz, enquanto tomava café. um desenho a caneta preta 
do interior do restaurante vegetariano Casa da Horta, situado na Ribeira, Porto.
O desenho (o traço preto) foi digitalizado e 
a folha original posteriormente pintada com lápis de cera.
Em 2015, imprimi a laser em papel de aguarela e realizei a aguarela seguinte:


'Casa da Horta 2015'
Tinta de aguarela sobre impressão de traço preto em papel de aguarela
ZMB

(Esta aguarela está na exposição 'Arte quase bruta'
realizada na Casa da Horta em Dezembro 2015)