sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

... e a tua vontade poderá ser tão bem domada como um bom cavalo.

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- És capaz de levar alguém a pensar isto ou aquilo, conforme quiseres?
Imediatamente me respondeu, no seu modo adulto, pausado e firme.
- Não - respondeu -, isso não se pode fazer. A nossa vontade não é livre, apesar de o pároco o afirmar. Nem o outro pode pensar o que quiser, nem eu posso conduzir o seu espírito segundo a minha vontade. O que nos é possível é observar bem uma pessoa e dizer então, com precisão, o que ela pensa ou sente e prever o que fará de seguida. É muito simples, mas as pessoas não o sabem e exige muita prática, naturalmente. Por exemplo, entre as borboletas nocturnas, existe uma certa qualidade de Falera, da qual as fêmeas são muito mais raras que os machos. Reproduzem-se do mesmo modo que as outras: o macho fecunda a fêmea e esta põe os ovos. Se alguém tiver uma fêmea destas (coisa que já foi experimentada, com frequência, por cientistas) os machos Falera chegam a fazer voos de horas para se juntarem a ela! De horas, repara bem! Num raio de vários quilómetros, todos estes machos sentem a única fêmea que há na zona! Tem-se procurado dar uma explicação para este fenómeno, mas é dificil consegui-lo. Deve haver uma espécie de sentido do olfacto ou qualquer outra coisa, à semelhança dos bons cães de caça que são capazes de distinguir e seguir um pista imperceptível. Estás a compreender? A natureza está repleta de coisas deste género, que ninguém sabe explicar. Agora, pela minha parte, acho que, se estas fêmeas fossem tão comuns como os machos, eles não teriam um olfacto de tal modo apurado. Só o possuem porque estão adestrados para isso. Se um animal ou uma pessoa dirigirem toda a sua atenção e força de vontade para determinado objectivo, acabarão por alcançá-lo. E nada há para além disto. É deste modo, também que se passam as coisas a que te referias. Observa bem uma pessoa e passarás a conhecer a sua personalidade melhor do que ela própria.
(...)
- Mas, afinal, como deveremos nós compreender essa questão da vontade? - perguntei, - Dizes que não temos uma vontade livre e, depois, que somente é necessário concentrar decididamente a vontade sobre alguma coisa para podermos alcançá-la. Isso, assim não faz sentido! Se não for senhor da minha própria vontade, não poderei dirigi-la neste ou naquele sentido.
- (...) A questão explica-se simplesmente. Se uma destas Faleras pretendesse dirigir a vontade para uma estrela ou qualquer outra coisa, não o conseguiria. Porém, ela nem sequer o tenta fazer. Procura exclusivamente o que, para ela, tem sentido e valor, aquilo de que necessita e lhe é indispensável. E, efectivamente, consegue o inacreditável: desenvolve um sexto sentido fabuloso, que nenhum animal possui além dela! Nós temos, certamente maior espaço de manobra e mais vastos interesses que um animal, mas também estamos confinados a uma esfera relativamente limitada, que não podemos transpor. Posso, com efeito, criar a ilusão de que desejo, impreterivelmente, ir ao Polo Norte, ou qualquer coisa do género, mas realizar algo com suficiente intensidade, só me é possível se a força que me impele radicar em mim e o meu ser estiver totalmente imbuído dela. Nesse caso, pretendendo alguma coisa que te seja exigido pelo teu íntimo, conseguirás fazê-la, e a tua vontade poderá ser tão bem domada como um bom cavalo.
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, página 53

"Demian"
Hermann Hesse
Edição Dom Quixote

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