quinta-feira, 25 de abril de 2024

-- Ouve lá, pá, onde é que nasceste?

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-- Mas nada que conseguiste ainda?

-- Nada, Maneco! -- Zeca esquivou contar o chicote de sô Souto, o melhor era mesmo calar essa história. -- Já mais de uma semana que estou procurar trabalho, e nada!...

Acendeu outro cigarro, cuspiu na água antes de perguntar:

-- E esse do jornal, já foste?

-- ainda.

-- O melhor é aproveitar mesmo hoje, cadavez, quem sabe?...

-- Oh! não vão me aceitar. Estou magrinho assim, eles falam aí no jornal «escritório e armazém». Você já sabe: sai serviço pesado!

Maneco abriu o recorte e leu o anúncio. em voz alta, devagar, a descobrir ainda cada letra, só segunda classe é que ele tinha, e ler depressa custava. Quando acabou, levantou de um salto parecia era gato, falou gozão pondo uma chapada nas costas de Zeca:

-- Vamos, miúdo!

Chamava-lhe sempre de miúdo quando ia-lhe ajudar nalguma coisa, Zeca já sabia, sorriu. Ao lado do amigo, sentindo a cabeça começar andar às voltas e o mar, muito brilhante, a tremer, falou:

-- Eu vou sozinho, Maneco. sim? Você falaste que ias ainda ajudar o teu amigo, fazer umas horas dele, lá na oficina...

Maneco lhe agarrou no braço só, ajudando a atravessar a estrada, e, antes de sair embora, recomendou:

-- Ouve ainda, Zeca. Se aí não consegues, passa na oficina. Então, como você mesmo quer, te levo no Sebastião para amanhã ir no cimento... Mas você é quem quer!

O tempo fugia para a noite; o sol, raivoso, queimava; tinha um céu muito azul, nem uma nuvem que se via, e na Baixa, sem árvores, os raios de sol atacavam mal. A barriga de Zeca Santos já não refilava mas o calor estava em todo o corpo, punha-lhe comichão nos pés, obrigava-lhe andar depressa no meio da gente toda, a sua camisa amarela ia rápida, esquivava os choques, avançando com coragem no anúncio de emprego, arranjando já na cabeça as palavras, as razões dele, ia falar a avó velha, qualquer serviço mesmo que quisessem lhe dar, não fazia mal, aceitava...

Mas na entrada parou e o receio antigo encheu-lhe o coração. A grande porta de vidro olhava-lhe, deixava ver tudo lá dentro a brilhar, ameaçador. Na mesa perto da porta, um rapaz, seu mais-velho talvez, farda de caqui bem engomada espiava-lhe. Num instante Zeca Santos mirou-se no vidro da porta e viu a camisa amarela florida, seu orgulho e vaidade das pequenas, amarrotada da chuva; as calças azuis, velhas, muito lavadas, todas brancas nos joelhos; e sentiu bem o frio da pedra preta da entrada nos buracos dos sapatos rotos. Toda coragem tinha fugido nessa hora, as palavras que adiantara pensar para dizer a vontade do trabalho e só o bicho na barriga começou o serviço dele outra vez, a roer, a roer. Com medo de sujar, empurrou a porta de vidro e entrou, dirigindo-se ao grande balcão. Mas não teve tempo de andar muito. U homem grande e magro estava na frente dele olhando-lhe o papel na mão. Zeca ia falar, ele só empurrou-lhe na mesa do contínuo:

-- Já sei, já sei. Não digas mais. Vens pelo anúncio, não é? anda para aqui. Xico, ó Xico!

O rapaz da farda veio nas corridas trazendo bloco de papel e lápis e parou na frente dele, à espera. O homem magro observou bem Zeca Santos nos olhos; depois, depressa, desatou a fazer perguntas, parecia queria-lhe mesmo atrapalhar: onde trabalhou; o que é que fazia; quanto ganhava; se estava casado; qual era a família; se era assimilado; se tinha carta de bom comportamento dos outros patrões; muitas coisas mais, Zeca Santos nem conseguia tempo de responder completo, nem nada. E no fim já, quando Zeca tremia de frio com aquele ar de escritório e o vazio da barriga a morder-lhe, a voz de todos a fugir, longe, cada vez mais longe, o homem parou na frente dele para perguntar, olhando a camisa, as calças estreitas, com seus olhos maus, desconfiados:

-- Ouve lá, pá, onde é que nasceste?

-- Nasceu onde? -- repetiu o contínuo.

-- Catete, patrão!

O homem então assobiou, parecia satisfeito, bateu na mesa enquanto tirava os óculos, mostrando os olhos pequenos, cansados.

-- De catete, hem?! Icolibengo?... Calcinhas e ladrões e mangonheiros!... E agora, por cima, terroristas!... Põe-te lá fora, filho dum cão! Rua, filho da mãe, não quero cá catetes!...

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página 35 - 39

de «Vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos» no volume «Luuanda»

de José Luandino Vieira

edição Edições 70


quinta-feira, 18 de abril de 2024

Boicotar as multinacionais, comprar no vizinho, não dar dinheiro ao capital

Tenho a voz repleta de mortos.
Amontoam-se em mim, sou um cemitério.
Tenho a voz repleta de medo.
Entre mortos e medo nada mais resta da vida.
Os jornais fuzilam-me ao pequeno-almoço 
e o pão sabe a escárnio.
O mundo é um álbum necrófilo 
que folheio página a página.
Entre rostos de órfãos 
e fachadas de hospitais 
os dias deixam detritos como impressões digitais.

O que devo fazer?

Héctor Yánover 
em "Por alguma razão, antologia de poesia argentina", página 64

Tradução de Hugo Miguel Santos 
Edição Contracapa


quarta-feira, 17 de abril de 2024

Cegos sem alma

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A festa continuava desconjuntada. Até naquele pátio das traseiras a cair aos bocados havia zonas de gueto e zonas de Malibu e Beverly Hills. Por exemplo, os mais bem-vestidos, os que tinham roupa de marca, agrupavam-se. Cada qual reconhecia os seus congéneres, e não se mostrava minimamente inclinado a misturar-se. Admirei-me de alguns deles se terem disposto a vir a um gueto de Venice. Talvez achassem que era chique. Está claro que o que metia mais nojo era o facto de a parte correspondente aos ricos e famosos ser correspondente, por natureza, a cabras e filhos-da-mãe imbecis. Ou então enriqueciam à custa da estupidez do público em geral. Tinham simplesmente tido a sorte de lhes cair uma fortuna do céu. A maioria era completamente desprovida de talento, uns cegos sem alma, não passavam de montes de esterco ambulantes, mas, aos olhos do público, eram uns deuses, belos e venerados. O mau gosto cria muito mais milionários que o bom gosto. No final, tudo se resume a quem conquista mais votos. Em terra de toupeiras, a toupeira é rei. Então, alguém merecia alguma coisa? Ninguém merecia nada...

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Charles Bukowski em «Hollywood» página 131

edição Alfaguara